11 de abr. de 2009

Sobre o livro
VINTE E DOIS CONTOS ESCOLHIDOS
de Emanuel Medeiros Vieira


Por Lauro Junkes*

Poucas atividades ou funções apresentam um caráter tão apaixonante como as de artista e escritor. Talvez por isso mesmo o artista criador necessariamente respira, vive, rumina sua obra quase que sem descanso, sem conformar-se com sua expressão presente, sempre em busca de renovação. Sob esse aspecto, podemos incluir o nome de Emanuel Medeiros Vieira entre os artistas autênticos, pois a criação literária constituiu atração obsessiva em toda sua existência, inclusive com tão freqüentes referências sobre o ato de escrever e a busca de tornar-se escritor. A amostragem contida no volume Vinte e Dois Contos Escolhidos (Brasília: LGE, 2007) evidencia como, na sua evolução por muitas décadas, o escritor, mesmo entre dúvidas e incertezas, perseguia o ideal de escritor.

Nos seus relatos de ficção, Emanuel M. Vieira nunca se preocupou com amenizar as situações existenciais ou fornecer ao leitor uma leitura amena, romantizada. Desde “Os Homens Doentes” (1967), situando-se dentro de um sanatório, o narrador coletivo (nós) pondera, em tom lento, pesado, como é a vida, sem sentido nem esperança, dos pacientes, doentes/loucos. O único destaque maior é o do rapaz que visita o pai, que resmunga e discute. Parece insinuar-se, quase inevitável, uma projeção do próprio autor. Em “Velas” (1968), igualmente tema e tom são pesados, com o narrador na rotina terrível – “E o fim do mês e o fim do ano”? – naquele ambiente envelhecido, estagnado. Com freqüência focaliza Dona Francisca e suas crises de asma, e com isso “recordei-me de meu tio”, manchado de sangue: “havia cortado a garganta”. Em tudo, o ambiente lúgubre das velas.

Os impetuosos arroubos do autor se confrontam, permanentemente, com o tema do amor, nunca de lirismo harmonioso, porém permanente paixão e desafio. O conto-título do livro “A Expiação de Jeruza” (1969) detém bela arquitetado nas sobreposições de imagens: Jeruza (felicidade x desordem, morte) e mãe, Jeruza e América, perpassando tudo um inextinguível anseio de vitalidade, de amor, sentimento de fusão, opondo-se aos ódios de superioridade: “não sabia que nunca mais haveria felicidade, estamos para a dor”. “Garopaba, meu amor” (1971) registra outro expressivo trabalho de paralelismos e fusões: Garopaba e Marta, procuradas – a primeira alterada pelo turismo e a segunda não existindo mais. Paira sobre tudo o ar de semana santa, encenando-se a Paixão de Cristo, que enseja diversas correspondências com a situação atual. “No Mercado” registra uma cena viva, direta, dramática, crua e brutal. O narrador vai ao encontro de Maria, que saía de lanchonete onde trabalhava, quase meia-noite, quando quatro sujeitos a atacam. Para o narrador, o mundo todo está errado, falso, podre e, quixotescamente, enfrenta todos para defendê-la. Outro conto-título de livro – “Sexo, Tristeza e Flores” (1973) – vem envolto totalmente em linguagem coloquializada, focalizando uma cena em bar, entre bebedores. A todo momento o narrador pede mais uma cana aos garçons e se dirige ao narratário, como que buscando compreensão e aprovação para seu livro pronto, observando com ironia: “Por que ler? Há a televisão.” Discute os caminhos do escrever, as condições do escritor, com ressaibos de amargura e revolta. Tudo é questionado. Lembra muito o Camus de A Queda. Tal temática enraíza-se em toda a obra do autor.
Outro tema invectivado com muita freqüência na literatura de Emanuel é o das alienações provocadas pela televisão. “Em cada Coração” (1972) expande longo libelo contra esse meio de comunicação, que representa alienação total da família, porque a única realidade passa a ser a da tela, iluminada e brilhante durante 24 horas do dia. Destaque-se o estilo sincopado, de frases curtas, nominais, simulando a rotinização da família de marionetes, para concluir em ambiente quixotesco/grotesco, que não permite diferenciar TV e “realidade”. Também a revolução militar de 1964 é alvo constante do autor. Em “No Planalto Central” (1979), se expõe o Emanuel revoltado, angustiado, encurralado, porque “houve um ano chamado 64” e, combinando duas vertentes fundamentais, estava “cansado de tantas fugas e trepadas frenéticas”. O relato vem denso e concentrado, presentificado, uma vida em um dia.

Entretanto, a paixão folhetinesca, a impositiva atração da mulher, a sexualidade insaciável retornam sem tréguas. “Dia das Mães” (1984) brota de um narrador que deixa a mulher em casa – ela aceitava tudo – e vai visitar a amante, tendo na cabeça a obrigação de redigir pareces para a repartição. Forte clima existencialista envolve tudo em tédio. Já em “Arredores de Chão Batido” (1988), o caixeiro-viajante Ariosto, 50 anos, vende de tudo. Mas, mesmo nos lugarejos de “chão batido”, já chegou a TV e o asfalto leva à cidade, de modo que ele vende cada vez menos e vai sentindo sua solidão: se tivesse uma casa, mulher, filho! Indaga-se: “de que miserável região surge essa necessidade pré-adolescente de ser amado”? Ao ser acolhido pela hospedeira Maria dos Anjos, ela lhe parece pura e angélica. O relato faz transparecer a constante solidão e carência desse homem, não permitindo ao leitor atitude passiva diante de retrato tão vigoroso da inútil fragilidade humana. Seria possível seccionar a literatura de Emanuel da sua vida?

De outra parte, Emanuel M. Vieira revela-se dinâmico, decidido, em ação constante, buscando com entusiasmo uma existência mais plena. “Longa Vida, Capitão” (1989) deixa transparecer, desde o início, um fascínio marcante que exerce a figura do Capitão sobre o narrador, então menino: personalidade anticonvencional, forte, voluntariosa, revolucionária, inquieta e inquietante, sobretudo aventureiro destemido que sabe celebrar a existência: “A vida é uma dádiva!” Centrada totalmente na personagem, a narrativa resulta de fragmentos de comentários. Essa busca por mais densa vivência conduz ao retorno à sua Desterro da juventude. “Amor aos Vinte Anos: Desterro – Anos Cinqüenta” (1994), sempre na primeira pessoa, confessionalidade indefectível do protagonista-narrador, procede a retorno aos anos 50 em Desterro: o Miramar, o cais Frederico Rola, com o adolescente enamorado, na memória de 50 anos depois. Retorna insistente tom de decadência, de melancolia, de nostalgia, o caráter sentimental. Perspectivas e realidades fecham-se em negatividades. E, incontido, insinua-se o leitmotiv do escritor tentando...

Tornar-se escritor, refletir sobre a criação literária, perseguir o áspero ofício e os árduos caminhos da projeção como escritor representam anseios impossíveis de ocultamento na carreira de Emanuel. “Ponto Final” (1989) restaura duas paixões do autor: o fascínio inextinguível pela mulher, em variações incontáveis, e o anseio por tornar-se escritor lido e consagrado. Entretanto, impõem-se sempre as irresoluções, a timidez... e o complexo de culpa. “Mãe na Soleira da Porta” (1992) seria o título do romance nunca terminado, no exercício premente do escrever (leitmotiv sempre inquietante na sua literatura): em torno da irmã Pérola, amor impossível, responsável por manter o narrador-personagem solteiro. Passaram-se os anos, e tudo se impregna do peso da solidão e da decadência: “Não terminei nada!”

A vida avança, fecham-se círculos, distanciam-se os laços familiares sempre fortes, carregam-se as cores do universo. Em “Meus Mortos Caminham Comigo nos Domingos de Verão” (1994), ainda avulta a figura, inegável, do narrador nostálgico: “Sou um velho, não por idade (50 anos) mas por ser o último sobrevivente da minha tribo”. E os mortos retornam para conversar com ele, no casarão vazio da família. Afiguram-se muito bem caracterizados os tipos, “para celebrar essa misteriosa ponte que construímos”. Narrativa mais curta, “Cerrados Amores” (1990) ainda se concentra no narrador(autor?), antevendo que “vou morrer”, sob a carga do peso da vida: “... as pessoas sofreram com a Ditadura, com as separações, com os fracassos sociais”, tornando-se difícil “fazer uma relação”. Pesam a indecisão, o anseio barrado pelo medo, a dúvida, o vazio e paira a necessidade de mulher; mas a velhice vai distanciando cada vez mais a realização. Já “Sem ninguém no Mundo” (1998) delineia a alegoria de uma vida almejada: sempre forte, nas inclinações de sentimento, porém marcada por indefinições e dúvidas, busca sem direcionamento certo, coração mole e sentimental, sempre vulnerável pela mulher.

Um passado de luta nunca se esquece e em “Os Hippies Envelhecidos”, transcorridos muitos anos, reencontram-se amigos que “cresceram na faculdade combatendo a ditadura militar”. Entrementes, os tempos mudaram, os arroubos arrefeceram, não estão mais em tempo de fazer “esbornia”, internamente “exilados”, com a “sabedoria de desencontros”, feitos “pistoleiros do entardecer”. O túnel do tempo tudo vai devorando, e a morte acena...

O estigma do amor, o drama da paixão nunca esgotada, a sede de amar e de ser amado não admitem tréguas para este ficcionista. “Blue Eyes” (1998) se constrói em blocos de monólogo interior, dominado pela nostalgia, fundindo lembranças com o frustrante presente. O narrador, Gabriel, de 60 anos – “um ser no crepúsculo” / “ainda não fui amado” –, tece suas reflexões ao saber da morte de Júlia. Transparece todo um anseio edênico por um universo sem culpa, sem pecado, sem malícia, quase que uma possível (con)vivência angelical, distante desse opaco peso existencial. “Poesia” (1991) registra cena de encontro do velho Jarbas com a moça Júlia (“que poderia ser sua neta”), para projetar tom poético e nostálgico, retomando bastante relato anterior “Blue Eyes”: “o amor não é o contrário da solidão: é a solidão dividida, iluminada pela solidão do outro”. Ocorre uma despedida final, porém o encontro “havia justificado uma vida inteira”. E “Laetícia” (1991) faz vislumbrar um amor a três: o narrador (“memorialista fragmentado, apenas crepuscular”) e Miguel (agora já morto) amavam Laetícia: “começou há 50 anos”. Projeta-se a crescente esfinge do tempo/idade e do anseio: “Fica, instante, fica” ou “Fica, instante; viva sempre”. Ao tempo, eles tinhas 25 anos e ela apenas 20. Há 15 anos o narrador fora avisado da morte dela. Haviam vivido a utopia de um carnaval em Olinda, os três juntos, “sem ciúmes”. Agora, sobrevive apenas ele, “depositário da memória da tribo”. Aflora ainda o sonho de “ter feito o romance de nossas vidas”, pelo que “escrevo como se estivesse enviando uma carta para os dois” e gostaria que ela fosse lida, o que não é possível.

À semelhança de O Estrangeiro, de Camus, o narrador de “Mãe” (1998) tenta manter frieza nessa cena em que a mãe morre, bem velha, e os três filhos “fazem o que é preciso”, após o que o primeiro e o terceiro filhos partem, enquanto o segundo fica para as providências no sobrado da mãe. Em monólogo interiorizado, em cena cinematográfica, passa-se a acompanhar exclusivamente este último. Entre puro registro exterior e lampejos interiores, intenta ele registrar o vazio da situação: está reduzido a “órfão de tudo”, nesse desfazer-se de todo sentido.

Emanuel Medeiros Vieira não vive nem escreve sem paixão. Se a vida é uma dádiva, é não menos um desafio. E como tranqüilizar essa explosividade interior que arrasta e desinquieta? Como equilibrar-se entre os desmandos de uma pretensa revolução, as alienações de uma televisão, as angústias da escritura que nunca se plenifica, o passado com tantas imagens recorrentes e o avançar da idade que sufoca na crescente solidão?

Alguns temas marcam recorrência quase obsessiva nesses contos selecionados: o anseio de “escrever”, de tornar-se “escritor”; o retorno à ilha amada, que permanece à distância; a solidão que se projeta crescentemente; o binômio fascinante mulher e bebida; o fantasma irritante da revolução de 64; também o planalto central, o cerrado. O tom confessional em momento algum é vencido, pois o autor arranca fragmentos de si próprio em cada relato. Muito presente se faz a força dos laços familiares, sobretudo da mãe e do pai. Da profusão de dedicatórias, em cada título de narrativa, parece depreender-se um anseio de renovar laços, de munir-se para as carências sempre impositivas. Enfim, todo o vigor dinâmico de Emanuel Medeiros Vieira está condensado nesses Vinte e Dois Contos Escolhidos.

* Lauro Junkes é crítico literário e presidente da Academia Catarinense de Letras (ACL). Ilustração: Gallo Sépia

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