14 de abr. de 2009

No universo de Borges


Por Paulo L. Medeiros Vieira*


“Meus livros – dizia Borges – que não sabem que eu existo, são tão parte de mim como este rosto”. Quando criança ele imaginava o céu sob a forma de uma biblioteca. Velho e cego, cantou com amargura a maestria de Deus, que com magnífica ironia, deu-lhe a um só tempo os livros e a noite. Essa paixão rivaliza com a que nutriu pela Comédia, cujo nome de batismo foi: “Incipit Commoedia Dantis Alagherii, florentini natione, non moribus”. Ou seja: Começa a Comédia de Dante Alighieri, florentino de nascimento, não de costumes. O adjetivo Divina é um acréscimo tardio, atribuído a Boccaccio, e apareceu pela primeira vez numa edição veneziana, de Giolito, em 1555. No poema, Virgílio, símbolo da Razão, é o guia de Dante através do Inferno e o Purgatório, e Beatriz, símbolo da Fé, será seu guia através do Paraíso. A Jorge Luis Borges, que nos deixou os Nove Ensaios Dantescos, tocará guiar-nos no universo da Comédia.


O Nobre Castelo do Canto Quarto

Iacopo di Dante, filho do poeta, afirma que a Comédia quer mostrar sob cores alegóricas os três modos de ser da humanidade. A primeira parte considera o vício, chamando-o Inferno; a segunda, a passagem do vício à virtude, é o Purgatório; a terceira, a condição dos homens perfeitos, o Paraíso. Iacopo della Lana escreveu: “Por considerar o poeta que a vida humana pode ser de três condições, que são a vida dos maus, a dos penitentes e a dos bons, dividiu seu livro em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso.”

Dante, no meio do caminho de sua vida, - perdido numa floresta escura - tentava em vão subir a uma colina luminosa. Eis que lhe aparece Virgílio e lhe propõe outro caminho. Um caminho áspero e terrível, que atravessa os reinos do além-túmulo. Dante hesita, aterrado, e só se decide quando Virgílio lhe diz que esse privilégio foi-lhe alcançado pela oração de Beatriz. Assim, Virgílio irá guiá-lo através dos lugares do pecado e da purificação. Ao penetrar no primeiro círculo do abismo, ele confessa a Dante que é um dos réprobos. Dante, estupefato, dissimula o horror. Virgílio explica que aquele é o Inferno dos que morreram antes da vinda de Jesus à terra. Quatro fantasmas o saúdam: Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. Dirigem-se a Dante como a um igual e o conduzem ao Castelo, um Inferno cujo sofrimento é a ausência de Deus e a certeza de que o dia de amanhã será como o de hoje, que foi como o de ontem, que foi como todos. Dante reconhece vários personagens, entre os quais César, Homero, Horácio, Ovídio, Lucano - projeções ou figurações do próprio poeta. Por que, então, ele construiu no Inferno o seu Castelo, e não no Paraíso? A resposta estaria na explicação inicial de Virgílio: eram pagãos, e por isso foram acomodados com as crianças que morreram sem batismo.



O FALSO PROBLEMA DE UGOLINO

No verso 75 do canto penúltimo do Inferno, Ugolino de Pisa, depois de narrar a morte de seus filhos na Prisão da Fome, disse que a fome pôde mais que a dor. “Depois, mais que a dor pôde o jejum.” Para Borges, a origem do problema está em confundir arte e realidade. Eis a cena: “No fundo glacial do nono círculo, Ugolino rói a nuca de Ruggieri degli Ubaldini e limpa a boca sanguinária com os cabelos do réprobo. Levanta a boca do feroz repasto e conta que Ruggieri o traiu e encarcerou junto com seus filhos.”

Muitas luas se passam e Ugolino, tranzido de dor, morde-se as mãos; os filhos crêem que o faz pela fome e lhe oferecem a própria carne. Entre um dia e outro ele os vê morrer. “Depois fica cego e fala com seus mortos e chora e os apalpa na sombra; depois a fome pôde mais que a dor”.

Rambaldi de Imola, comenta: “Quer dizer que a fome rendeu a quem tanta dor não pôde vencer e matar”. Borges arrola Torraca, Vitali e Casini. Torraca vê estupor e remorso em Ugolino; Casini critica a interpretação literal, contrária à natureza e à história. Croce fica com a interpretação tradicional. Luigi Pietrobono diz que “o verso é deliberadamente misterioso”. Para Borges, Dante não pode ter deixado de sentir sua inverdade; mas o problema do canibalismo é insolúvel.


A ÚLTIMA VIAGEM DE ULISSES

Trata-se, aqui, do relato que Dante põe na boca de Ulisses (Inferno, XXVI, 90-142). Instado por Virgílio a relatar como encontrou a morte, Ulisses diz que nem o amor de Penélope venceu o ardor de conhecer o mundo. Com o último navio e os poucos fiéis que lhe restavam, lançou-se ao mar aberto. Já velhos, chegaram à garganta onde Hércules fixou suas colunas. Era o limite marcado à ambição humana. Ulisses o ignorou, instando seus companheiros a se lançarem ao mundo sem gente e aos mares não sulcados. Exortou-os de que não nasceram para viver quais brutos, mas para buscar virtude e sapiência. E assim fizeram, fendendo o mar até divisarem uma montanha alta como jamais haviam visto. Mas uma tormenta afundou o navio e o mar fechou-se sobre eles. Alguns tacham de sacrílega a viagem, porque a montanha vista por Ulisses é a montanha do Purgatório, vedada aos mortais. Para outros, Ulisses e Diomedes eram falsários e foram castigados como tal. Ulisses reconhecerá que sua viagem foi insensata e temerária. Segundo o poeta, ninguém que tenha navegado essas águas conseguiu voltar. Ulisses quis alcançá-la fiando-se em suas próprias forças. Dante, como um novo Ulisses, chegará a ela cingido de humildade - a razão iluminada pela graça. Borges indica outra afinidade, a de Ulisses com outro desditoso capitão, Ahab, de Moby Dick”, que também lavra sua própria perdição.


VERDUGO PIEDOSO

O autor inicia este ensaio apontando uma contradição e anunciando quatro conjeturas possíveis. A contradição: embora pondo Francesca no Inferno, Dante ouve com profunda compaixão a história de sua culpa. A primeira conjetura é técnica. Para evitar que seu poema degenerasse num vão catálogo ou numa descrição topográfica, “se não o amenizassem as confissões das almas perdidas”, resolveu alojar em cada círculo do Inferno um réprobo capaz de confissões patéticas. Essa conjetura, verossímil, teria, contudo, algo de mesquinho que não condiz com o poeta. A segunda equipara as invenções literárias, às oníricas. Dante condena Francesca e Paolo por invejar-lhes o destino: mesmo no Inferno, une-os para sempre seu amor. A terceira é também, técnica. Dante teve de antecipar as inescrutáveis decisões de Deus. Diante do pecador impenitente, não havia como absolvê-lo. Ético, condenou, mas condoeu-se. A quarta conjetura, para Borges, não desata o problema. Limita-se a formulá-lo. Dante “narra com tão delicada compaixão a culpa de Francesca, que todos a sentimos inevitável”.


DANTE E OS VISIONÁRIOS ANGLO-SAXÕES

No Canto X do Paraíso, Dante conta como ascendeu à esfera do Sol e viu uma coroa de espíritos mais luminosos que a luz contra a qual se destacavam. O primeiro, Tomás de Aquino, enumera os doze, cujo sétimo é Beda, O Venerável, autor da História Eclesiástica da Inglaterra. Borges o exalta por haver registrado visões ultraterrenas, que prefiguram a obra de Dante. Também cita Fursa, que, enfermo, foi arrebatado ao céu. No caminho viu os males que consumirão o mundo: Discórdia, Iniqüidade, Mentira e Ambição. E Nortúmbria, que morreu ao anoitecer e renasceu pela manhã, explicando à mulher, que o velava, que sua vida ia mudar. Distribuiu os bens, despediu-se e partiu para testemunhar o que lhe foi revelado enquanto esteve morto. Seu relato prefigura passagens ultraterrenas da Comédia e lhes confere verossimilhança. “Muitos homens e muitas gerações convergem para um grande livro,” diria Borges.


PURGATÓRIO

É este o menor dos nove ensaios e se refere apenas ao verso 13 do Canto I do Purgatório: “Dolce color d`Oriental zaffiro”. Butti explica que a safira é uma pedra preciosa de cor entre celeste e azul, muito agradável à vista e que a safira oriental é uma variedade que se encontra na Média. Dante, pois, sugere a cor do Oriente por meio de uma safira em cujo nome está o Oriente. Insinua um jogo recíproco que pode ser infinito: “A dulcíssima cor da oriental safira”. Lembre-se que o Purgatório, no poema, segue-se ao Inferno. Daí, como destaca M. Claret, há um instintivo respirar de alívio no emergir da ‘aura morta` e no reencontrar, acima de si, o Céu, “doce cor de oriental safira”. Nele tudo é diverso: a paisagem, a atmosfera, a luz que chove do alto (A Divina Comédia, Prefácio, Ed. Martin Claret). O comentário de Borges resume-se à metáfora, para mostrar a diferença do destino dos condenados ao Inferno, diante do qual toda Esperança foi deposta, e o dos penitentes do Purgatório, que antegozam o Paraíso que os aguarda.


O SIMURG E A ÁGUIA

O Simurg era o rei dos pássaros, que certo dia resolveram procurá-lo. Sabiam o significado de seu nome: Trinta pássaros, e que sua fortaleza ficava no Kaf, a montanha que rodeia a terra. Na viagem, superam vales e mares; o penúltimo é Vertigem; o último, Aniquilação. Muitos peregrinos desertam; outros não resistem e morrem. Trinta pisam a montanha do Simurg. Contemplando-a descobrem que eles são o Simurg. Para o panteísmo, qualquer coisa é todas as coisas. Borges refere-se ao canto XVIII do Paraíso e lembra que nessa esfera voam celestiais criaturas, que formam a cabeça de uma águia, que depois resplandece por inteiro. Comparando as duas criações, lembra que um século antes que Dante concebesse o emblema da Águia, Farid al-Din Attar concebera o Simurg. Nos dois episódios, a aventura que se conta é a de peregrinos que buscam alcançar uma meta. O desfecho será a conquista dessa meta, ou o malogro.


O ENCONTRO NUM SONHO

Para além dos círculos do Inferno e dos terraços do Purgatório, Dante entra no Paraíso terrestre. Antes, chega à margem de um rio. Vibra no ar uma música e na outra margem avança uma procissão puxada por um carro triunfal. Este se detém e desce uma mulher velada. Pelo estupor do seu espírito, Dante sabe que é Beatriz. Assustado, procura Virgílio, que já não está aí. Beatriz chama-o e lhe diz que não deve chorar pelo sumiço de Virgílio, mas por suas culpas. Ordena que confesse seus pecados. Borges lamenta a frustração do poeta, e pensa em Francesca e Paolo, no Inferno, mas unidos para sempre.


O ÚLTIMO SORRISO DE BEATRIZ

Eis, no canto XXXI do Paraíso, para Borges os versos mais patéticos que a literatura alcançou. No alto da montanha do Purgatório, Dante perdera Virgílio. Guiado por Beatriz, chega ao Primeiro Motor. Ascendem ao empíreo, feito só de luz, e se dá conta de que Beatriz o deixou. Dante avista-a no alto, num dos círculos da Rosa e a venera: “Ó dama, a que minha alma se confia, / e que por bem de minha salvação / acedeste em descer do Inferno a via...” Beatriz sorri, e se volta para a Eterna Formosura.

Vitali acredita que Dante ao criar o Paraíso foi movido pelo afã de fundar um reino para sua dama. Torraca anotou: Último olhar, último sorriso, mas promessa certa. Pietrobono diz que Beatriz sorri para dizer a Dante que sua prece foi ouvida. Para Borges Dante perdeu Beatriz, e para compensar-se fez do sorriso uma promessa. Para ele, Dante edificou o melhor livro que a literatura alcançou para intercalar encontros com a irrecuperável Beatriz.

Borges dizia que o prestígio do livro aos poucos passou a valer como selo de identidade de um país. Os muçulmanos referiam-se aos judeus como aquele povo cuja pátria é um livro – a Bíblia. A Inglaterra escolheu Shakespeare; a Alemanha, Goethe; a França, Victor Hugo; a Espanha, Cervantes; o Império Romano, Virgílio; a Itália, Alighieri. Ouso dizer que o Brasil escolheria Machado; Portugal, Pessoa, Eça ou Camões, e a Argentina, Jorge Luis Borges. Borges, o mago apontado por Harold Bloom entre os cem gênios da literatura. Borges que influenciou Humberto Eco, A. Carpentier, Gabriel Garcia Marques, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Júlio Cortazar e, entre os mais lidos do mundo, Ruan Rulfo, de Pedro Páramo.



*Paulo Leonardo Medeiros Vieira, residente em Florianópolis-SC, é advogado, membro da Academia Catarinense de Filosofia e autor de, entre outros livros, A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé e Borges – Um Giróvago. O texto foi publicado na revista EntreClássicos nº 10 (série da revista EntreLivros - revistaentrelivros.com.br). Reprodução autorizada pelo autor.

Ilustrações: Gallo Sépia

Um comentário:

  1. Beleza Celso. Quando não é o Emanuel é o Paulo. Grande força meu amigo, muito bacana a abertura de espaço à literatura de nossos 'caboclos'.

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