Presépio na casa de Dircéa Martins da Silveira,
no bairro da Trindade (Florianópolis-SC),
montado por Roberto Martins da Silveira
com peças adquiridas na década de 1940.
no bairro da Trindade (Florianópolis-SC),
montado por Roberto Martins da Silveira
com peças adquiridas na década de 1940.
Adital - Natal é festa polissêmica. De certo modo, desconfortável. Para os cristãos, comemoração do nascimento de Jesus, Deus feito homem. Para a indústria e o comércio, ocasião de promissoras vendas. Para uns tantos, miniférias de fim de ano. Para o peru, dia de finados.
O desconforto resulta da obrigatoriedade de dar presentes a quem não amamos, mal conhecemos ou fingimos amizade. Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente o caráter religioso. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, símbolo do fetiche da mercadoria.
O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista despe-nos da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite de 24 de dezembro, reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite, antecipando-se à madrugada na qual impera a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes falam mais alto que bons e velhos costumes: oração em família, cânticos litúrgicos, narrativas bíblicas, memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judéia.
Uma atualização dos eventos bíblicos permite-nos imaginar, a partir do contexto brasileiro, o leitor do Diário de Belém, edição de 26 de dezembro de 1, frente à seguinte notícia: "Família de sem-terra ocupou ontem a fazenda Estrela de Davi, em cujo pasto uma tal Maria, esposa do carpinteiro José, deu à luz o filho Jesus. A polícia de Herodes está no encalço dos sem-terra, que se encontram foragidos."
A abstração da linguagem, contudo, faz do pseudolirismo natalino o inverso do fato histórico. O Verbo encarnado perde contundência e cede lugar ao presépio descontextualizado, mero adorno à festa papainoélica.
Vivemos hoje assolados por fortes ventos esotéricos, nessa época epifânica em que religiões tendem a ocupar o lugar deixado pelas ideologias messiânicas. Assistimos à crise das Igrejas tradicionais, encerradas num monólogo ininteligível para o contexto de pluralismo e tolerância com o diferente. A perplexidade assemelha-se à da professora de piano clássico que vê seus alunos aplaudirem os metaleiros.
Proliferam novas modalidades de aspirar ao Transcendente, da aeróbica litúrgica às meditações orientais. Nunca houve, na expressão de Rimbaud, tanta "gula de Deus". I Ching, astrologia, búzios, tarô etc., são vias pelas quais se tenta encontrar segurança diante do futuro imprevisível. Agora, já não há tanto interesse pelas religiões das grandes narrativas bíblicas, da santidade ascética, da autoridade sacralizada, da moral coercitiva, da escatologia que nos faz trafegar, titubeantes, sobre o fio invisível que liga o Céu ao Inferno.
Predominam as religiões do consolo subjetivo, da alegria d'alma, da cura imediata, dos fenômenos paranormais, da comunidade que se sente resgatada do anonimato, de bênçãos e graças que jorram quais juros de quem acredita na versão pós-moderna do dilema "a bolsa ou a vida". Vigora a religiosidade prêt-à-porter, sem culpas, macroecumênica, fundada na crença em um Deus que dispensa hierarquias, manifesta-se pelas regras de ouro do marketing e tolera todas as nossas incoerências.
Talvez não haja na literatura brasileira quem melhor tenha captado o sentido do Natal que Machado de Assis, no clássico conto Missa do Galo. Não há propriamente missa, apenas a espera ansiosa num serão que progressivamente transmuta a anfitriã Conceição, que atingira os 30 anos, aos olhos de Nogueira, rapaz de 17. Machado faz do coração do jovem narrador um profundo e aquiescente presépio, onde a vida renasce no sutil milagre do amor desinteressado. Um gosto de eternidade. De eterna idade. No entanto, quebrado pelo tempo que flui incoercível ao ritmo implacável das horas. Na sala, a missa em torno da musa antecede e realiza a comunhão, eclodindo na beleza de um singelo encontro entre duas pessoas.
Isso é Natal, festa rara no mais profundo de si mesmo, na qual as pessoas se fazem presentes umas às outras e entre as quais o amor refulge como estrela. Essa festa não tem data e é celebrada sempre que há encontro em clima de afeto e sabor de comunhão. Ali, as palavras são como barbante de presente em mãos de uma criança: a cada nó desfeito, uma expectativa de surpreendente revelação.
O desconforto resulta da obrigatoriedade de dar presentes a quem não amamos, mal conhecemos ou fingimos amizade. Transferido o presépio de Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa perde progressivamente o caráter religioso. O Menino da manjedoura, que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e barrigudo, símbolo do fetiche da mercadoria.
O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista despe-nos da religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite de 24 de dezembro, reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite, antecipando-se à madrugada na qual impera a violência urbana. O apetite da ceia e a curiosidade em abrir presentes falam mais alto que bons e velhos costumes: oração em família, cânticos litúrgicos, narrativas bíblicas, memória dos eventos paradigmáticos de Belém da Judéia.
Uma atualização dos eventos bíblicos permite-nos imaginar, a partir do contexto brasileiro, o leitor do Diário de Belém, edição de 26 de dezembro de 1, frente à seguinte notícia: "Família de sem-terra ocupou ontem a fazenda Estrela de Davi, em cujo pasto uma tal Maria, esposa do carpinteiro José, deu à luz o filho Jesus. A polícia de Herodes está no encalço dos sem-terra, que se encontram foragidos."
A abstração da linguagem, contudo, faz do pseudolirismo natalino o inverso do fato histórico. O Verbo encarnado perde contundência e cede lugar ao presépio descontextualizado, mero adorno à festa papainoélica.
Vivemos hoje assolados por fortes ventos esotéricos, nessa época epifânica em que religiões tendem a ocupar o lugar deixado pelas ideologias messiânicas. Assistimos à crise das Igrejas tradicionais, encerradas num monólogo ininteligível para o contexto de pluralismo e tolerância com o diferente. A perplexidade assemelha-se à da professora de piano clássico que vê seus alunos aplaudirem os metaleiros.
Proliferam novas modalidades de aspirar ao Transcendente, da aeróbica litúrgica às meditações orientais. Nunca houve, na expressão de Rimbaud, tanta "gula de Deus". I Ching, astrologia, búzios, tarô etc., são vias pelas quais se tenta encontrar segurança diante do futuro imprevisível. Agora, já não há tanto interesse pelas religiões das grandes narrativas bíblicas, da santidade ascética, da autoridade sacralizada, da moral coercitiva, da escatologia que nos faz trafegar, titubeantes, sobre o fio invisível que liga o Céu ao Inferno.
Predominam as religiões do consolo subjetivo, da alegria d'alma, da cura imediata, dos fenômenos paranormais, da comunidade que se sente resgatada do anonimato, de bênçãos e graças que jorram quais juros de quem acredita na versão pós-moderna do dilema "a bolsa ou a vida". Vigora a religiosidade prêt-à-porter, sem culpas, macroecumênica, fundada na crença em um Deus que dispensa hierarquias, manifesta-se pelas regras de ouro do marketing e tolera todas as nossas incoerências.
Talvez não haja na literatura brasileira quem melhor tenha captado o sentido do Natal que Machado de Assis, no clássico conto Missa do Galo. Não há propriamente missa, apenas a espera ansiosa num serão que progressivamente transmuta a anfitriã Conceição, que atingira os 30 anos, aos olhos de Nogueira, rapaz de 17. Machado faz do coração do jovem narrador um profundo e aquiescente presépio, onde a vida renasce no sutil milagre do amor desinteressado. Um gosto de eternidade. De eterna idade. No entanto, quebrado pelo tempo que flui incoercível ao ritmo implacável das horas. Na sala, a missa em torno da musa antecede e realiza a comunhão, eclodindo na beleza de um singelo encontro entre duas pessoas.
Isso é Natal, festa rara no mais profundo de si mesmo, na qual as pessoas se fazem presentes umas às outras e entre as quais o amor refulge como estrela. Essa festa não tem data e é celebrada sempre que há encontro em clima de afeto e sabor de comunhão. Ali, as palavras são como barbante de presente em mãos de uma criança: a cada nó desfeito, uma expectativa de surpreendente revelação.
Frei Beto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros. Texto distribuído pelo Centro de Estudos Políticos Econômicos e Culturais- Cepec.
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