O LUGAR DO ENCONTRO
Por Olsen Jr.
Foi em março de 1973 que entrei pela primeira vez na Kibelândia. O balcão do bar era de fórmica, lembrava uma mercearia, com vidro frontal, protegido por uma barra de ferro que deixava à mostra o que havia dentro. Estava nos fundos, na mesma direção da porta, o que facilitava o atendimento.
Vivíamos em uma ditadura militar e o clima não era de festa. Tinha 17 anos, recém entrado na Faculdade de Engenharia Civil da Furb e estava em Florianópolis junto com o colega, Paulo Fernando Boamar, gaúcho de Lagoa Vermelha para o “IIº Encontro de Presidentes de Diretórios Acadêmicos da Região Sul”. Naturalmente, o evento deveria ser realizado na clandestinidade, uma vez que todas as “reuniões” com fins políticos haviam sido proibidas pelo regime. Fazíamos parte da primeira turma de engenharia, não tínhamos ainda o diretório, mas com o apoio de Francisco Cannola Teixeira, líder estudantil dos outros cursos da instituição, a turma da engenharia indicou os nossos nomes para a tarefa. Isso, claro, depois do Paulo ter declarado no Jornal de Santa Catarina que um diretório não devia se limitar a só fazer carteirinhas de estudante. Como ninguém protestava em público, a insatisfação do meu colega teve conotação insurgente, estava junto com ele e nos associaram daí passei a ser diferente, um insubmisso.
Chegamos à véspera, de tarde, e fomos surpreendidos por um velório. Soubemos tratar-se de uma líder estudantil da UFSC que todos gostavam muito. A comoção era grande, difícil de suportar. Saímos logo, dormimos na Casa do Estudante onde alguém do local fazia greve de banho, o cheiro era insuportável, mas não tivemos escolha naquela noite. Na manhã seguinte ainda havia muita consternação quando alguém sugeriu que o encontro deveria ser na Kibelândia ao meio-dia.
Quando chegamos, dou de cara com o Celso Padilha (o Pinduca) vizinho e amigo desde a década de 1960 em Chapecó, estava sozinho, na segunda mesa à esquerda de quem entra. Foi uma surpresa. Sentei ali. Tínhamos muita conversa para por em dia. O Paulo enturmou-se em outra mesa, com estudantes de Porto Alegre e de Florianópolis.
O ano de 1973 foi emblemático. As peças daquele misterioso e violento quebra-cabeça só poderiam ser avaliadas muitos anos mais tarde. Politicamente começou com a quartelada chilena que depôs o presidente socialista eleito Salvador Allende, em seguida a repressão que torturou e matou o produtor de teatro e compositor Victor Jara em pleno Estádio do Chile. No Brasil, a morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, preso, torturado e morto pelos militares, tinha 22 anos. O ministro da justiça Alfredo Buzaid, proibiu a vinda ao Brasil de uma exposição de gravuras eróticas de Picasso. Aliás, tanto o Pablo Picasso quanto o Pablo Casals e o Pablo Neruda morreram naquele ano.
Na Kibelândia soubemos durante o dia que agentes ligados a repressão estavam rondando o campus, tinha alguma coisa no ar, e eles sabiam. Daí fizemos o óbvio, fomos até a antiga sede dos diretórios acadêmicos na rua Álvaro de Carvalho, com mesa de tênis de mesa e outros entretenimentos, organizamos a reunião. A idéia era a partir dos diretórios, reestrurar a UNE que deveria funcionar mesmo na ilegalidade. Naquele cenário de jogos e idéias, tudo foi muito insipiente, não saímos do papel e dos sonhos.
Mas o endereço na Victor Meirelles,98 ficou marcado. Ali conheci a Valéria (que acabou sendo personagem do conto “20 Anos Depois”) e que o Pinduca dizia ser “muita areia para o caminhãozinho dele”... Agora, se você passar por Florianópolis e quiser conhecer o lugar onde se tramou alguns dos episódios que foram vitais para o retorno à democracia no Brasil, vá até a Kibelândia, se tiver sorte, alguns daqueles personagens ainda estarão lá, diante de um copo de chope, afirmando: “Temos a nossa história para contar!”.
Vivíamos em uma ditadura militar e o clima não era de festa. Tinha 17 anos, recém entrado na Faculdade de Engenharia Civil da Furb e estava em Florianópolis junto com o colega, Paulo Fernando Boamar, gaúcho de Lagoa Vermelha para o “IIº Encontro de Presidentes de Diretórios Acadêmicos da Região Sul”. Naturalmente, o evento deveria ser realizado na clandestinidade, uma vez que todas as “reuniões” com fins políticos haviam sido proibidas pelo regime. Fazíamos parte da primeira turma de engenharia, não tínhamos ainda o diretório, mas com o apoio de Francisco Cannola Teixeira, líder estudantil dos outros cursos da instituição, a turma da engenharia indicou os nossos nomes para a tarefa. Isso, claro, depois do Paulo ter declarado no Jornal de Santa Catarina que um diretório não devia se limitar a só fazer carteirinhas de estudante. Como ninguém protestava em público, a insatisfação do meu colega teve conotação insurgente, estava junto com ele e nos associaram daí passei a ser diferente, um insubmisso.
Chegamos à véspera, de tarde, e fomos surpreendidos por um velório. Soubemos tratar-se de uma líder estudantil da UFSC que todos gostavam muito. A comoção era grande, difícil de suportar. Saímos logo, dormimos na Casa do Estudante onde alguém do local fazia greve de banho, o cheiro era insuportável, mas não tivemos escolha naquela noite. Na manhã seguinte ainda havia muita consternação quando alguém sugeriu que o encontro deveria ser na Kibelândia ao meio-dia.
Quando chegamos, dou de cara com o Celso Padilha (o Pinduca) vizinho e amigo desde a década de 1960 em Chapecó, estava sozinho, na segunda mesa à esquerda de quem entra. Foi uma surpresa. Sentei ali. Tínhamos muita conversa para por em dia. O Paulo enturmou-se em outra mesa, com estudantes de Porto Alegre e de Florianópolis.
O ano de 1973 foi emblemático. As peças daquele misterioso e violento quebra-cabeça só poderiam ser avaliadas muitos anos mais tarde. Politicamente começou com a quartelada chilena que depôs o presidente socialista eleito Salvador Allende, em seguida a repressão que torturou e matou o produtor de teatro e compositor Victor Jara em pleno Estádio do Chile. No Brasil, a morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, preso, torturado e morto pelos militares, tinha 22 anos. O ministro da justiça Alfredo Buzaid, proibiu a vinda ao Brasil de uma exposição de gravuras eróticas de Picasso. Aliás, tanto o Pablo Picasso quanto o Pablo Casals e o Pablo Neruda morreram naquele ano.
Na Kibelândia soubemos durante o dia que agentes ligados a repressão estavam rondando o campus, tinha alguma coisa no ar, e eles sabiam. Daí fizemos o óbvio, fomos até a antiga sede dos diretórios acadêmicos na rua Álvaro de Carvalho, com mesa de tênis de mesa e outros entretenimentos, organizamos a reunião. A idéia era a partir dos diretórios, reestrurar a UNE que deveria funcionar mesmo na ilegalidade. Naquele cenário de jogos e idéias, tudo foi muito insipiente, não saímos do papel e dos sonhos.
Mas o endereço na Victor Meirelles,98 ficou marcado. Ali conheci a Valéria (que acabou sendo personagem do conto “20 Anos Depois”) e que o Pinduca dizia ser “muita areia para o caminhãozinho dele”... Agora, se você passar por Florianópolis e quiser conhecer o lugar onde se tramou alguns dos episódios que foram vitais para o retorno à democracia no Brasil, vá até a Kibelândia, se tiver sorte, alguns daqueles personagens ainda estarão lá, diante de um copo de chope, afirmando: “Temos a nossa história para contar!”.
(olsenjr@matrix.com.br)
Nota
A ilustração da crônica é o recorte de uma aquarela capturada no Tijoladas do Mosquito e sem indicação de autoria. Os traços lembram Átila Ramos. Será dele o trabalho?
Nota
A ilustração da crônica é o recorte de uma aquarela capturada no Tijoladas do Mosquito e sem indicação de autoria. Os traços lembram Átila Ramos. Será dele o trabalho?
Celso, camarada, salve!
ResponderExcluirBoa lembraça essa para a ilustração... É de fato uma aquarela do nosso amigo Átila Ramos...
Também será a capa de um livro de contos que escrevo sobre a Kibelândia... Serão 33 histórias ambientadas ali... Todas elas terão narradoras femininias, quer dizer, elas é que contam as histórias... Coisa de louco, mas um bom balanço do período (1973/1982)...
Um abração do poeta
Olsen Jr.